26 set/2013
Na década de 1990, trabalhei com uma aluna com deficiência intelectual, D.M.O., que não conseguia ser alfabetizada e sempre me perguntava: "Sandra, por que não consigo ler e escrever?"
Aquilo me doía muito e ao questionar as professoras regentes que já haviam trabalhado com ela, eu ouvia: "D. só consegue copiar. Se apagarmos o nome dela do quadro (negro), não consegue escrever sozinha no caderno, sem copiar."
Quando comecei a trabalhar nesta escola especializada e com D.M.O., ela tinha 9 anos de idade (início dos anos 90). Sua deficiência foi causada por prematuridade e desnutrição porque a mãe era dependente química do álcool e pouco se alimentava durante a gestação (segundo relato do pai).
Durante minha primeira viagem com a turma desta escola para uma competição esportiva das Escolas Especiais (início dos anos 90), eu e outros Professores de Educação Física percebemos que D.M.O. destacava das demais alunas no potencial motor, até mesmo em relação às mais velhas que ela.
Nos anos seguintes, além do atletismo, começamos o trabalho na piscina. D.M.O. demonstrou habilidade também para natação, vindo participar desta modalidade em competições posteriores, inclusive a nível nacional.
Após 3 anos e meio de trabalhos com D.M.O. nas atividades de Educação Física, tivemos uma surpresa que me emociona até hoje só de contar e escrever...
Quando D.M.O. estava com 13 anos, enquanto eu dirigia meu carro ao voltar de uma viagem onde participamos de outra competição esportiva das Escolas Especiais, percebi que ela começou a fazer perguntas abstratas que, via de regra, pessoas com deficiência intelectual não conseguem articular ou internalizar. Fiquei surpresa e encantada.
Resultado: ao chegar na Escola, na semana seguinte, pedi à psicóloga da época que fizesse uma reavaliação em D.M.O., aplicando testes relacionados à alfabetização porque me parecia que o momento que ela tanto sonhava, havia chegado. E não deu outra: o resultado do teste específico para alfabetização apresentou que ela estava com 7 anos e 10 meses, ou seja, idade em que as crianças, da época (meados dos anos 90), entravam para a 1ª série primária. Lembrando que a idade cronológica de D.M.O. era 13 anos.
Até então, eu não havia contado minha suspeita para D.M.O. porque não queria despertar falsas esperanças. Só contei a ela que a psicóloga iria bater um papo e pedir para fazer alguns exercícios.
Toda contente e emocionada com o resultado dos testes, perguntei a D.M.O. se ainda tinha vontade de aprender a ler e escrever, ela me disse que sim. E contei: "Parece que chegou a hora. Você quer ir para uma escola comum?" Ela respondeu: "Você acha que posso?”. Falei: “Com certeza!”. D.M.O.: “Quero sim!”.
Bem, a partir deste momento, me dediquei a preparar todos e tudo para que a inclusão não fosse frustrante para D.M.O. A expectativa dela ― e a minha ― era muito grande, eu tinha que pensar em vários detalhes para que não houvesse fracasso e tristeza para nós duas.
Com o aval da pessoa mais interessada no assunto, D.M.O., fui procurar a família e contei todos os fatos ocorridos desde aquela viagem de volta, no meu carro. Conversamos sobre tudo na presença de D.M.O. para ela se preparar sobre quais dificuldades estavam por vir, para que se preparasse e fortalecesse para conseguir vencer cada uma delas, tendo a certeza de que todos nós lhe daríamos proteção.
Acredito que alguns leitores devem estar se perguntando: mas se ela tem deficiência intelectual, como pode ouvir tudo e se preparar? É certo falar na frente da pessoa com deficiência, sobre a sua deficiência? Sim. Nós, que trabalhamos e estudamos muito a respeito, sabemos a forma como preparar este momento.
Retomando... coloquei inúmeras situações para a família, que me fez várias perguntas. Respondi todas as que estavam ao meu alcance. A dúvida principal era se a escola comum do bairro onde D. morava estava interessada em receber pessoas com deficiência.
Pouquíssimas escolas se dispunham a receber alunos com deficiência.
Lembro aos leitores que estávamos em meados dos anos 90 e que D.M.O. seria matriculada na escola comum. O que significa dizer que, se hoje (2013), encontramos dificuldades para inserir uma pessoa com deficiência em uma escola, imagine há 16 anos, quando estava iniciando a discussão da nova terminologia “inclusão”, ao invés de “integração” (discurso da época).
Tratava-se de um período em que praticamente não existiam cursos específicos para professores se prepararem para trabalhar com pessoas com deficiência. Eram pouquíssimos cursos, leis e pessoas interessadas. Não existia a facilidade da educação à distância. Enfim, não tínhamos muitos fatores a nosso favor, mas concordamos que iríamos encarar este desafio.
Por todos os motivos acima expostos, optei por deixar D.M.O. bem informada (dentro da sua capacidade cognitiva), sobre os preconceitos que poderia sofrer. Isto porque toda pessoa com deficiência intelectual, sabe quando alguém a rejeita por preconceito. Em outro relato, falarei a respeito.
Definida a escola a ser matriculada, passamos para o desafio seguinte: provavelmente a escola iria permitir a matrícula de D. somente no turno da noite (Supletivo - o E.J.A. - Educação de Jovens e Adultos - da época), já que a diferença de idade cronológica para a turma de 1ª série diurna seria muito grande. Os alunos de 1ª série costumavam ter entre 7 e 8 anos. D. estava com 13 anos de idade. A discriminação já poderia acontecer neste primeiro contato até pela diferença de altura. Porém, orientei a família que não permitisse que D. fosse matriculada na turma da noite por vários motivos que relato nas palestras.
E assim, foi feito. A responsável por D. argumentou com a diretora e conseguiu a matrícula na turma das crianças. A partir dessa definição, vários passos foram tomados para que D. não sofresse preconceito e a inclusão fosse um sucesso. Foi maravilhoso para todos nós e a escola, tudo o que aconteceu a partir daquele início de ano letivo.
Próximo passo
D. já estava conhecida na cidade pelos bons resultados em competições, sua imagem circulava com frequência nos jornais e TVs locais. Aproveitando este fato, a professora regente teve grande contribuição para a inclusão de D. em toda a escola com várias atividades que relato nas Palestras. Procurei o professor de Educação Física e fiz algumas sugestões.
Desta maneira, conseguimos alcançar o sucesso de D. na tão sonhada inclusão. D. se sentia tão feliz que seu aprendizado foi ótimo nas primeiras séries, em todas as disciplinas. Tinha ótimo aproveitamento! Realizou seu sonho de ler e escrever, aprendeu a matemática básica, aprendeu história, ciências, sobre o corpo humano, natureza e tantos assuntos que ela ia me contando com a alegria de quem descobre o mundo. Assistia a telejornais e conversava comigo a respeito de notícias diversas. Foi uma época muito feliz para todos nós. Eu me emocionava direto, a cada semana. Até a timidez dela foi muito superada neste período.
D. continuava frequentando a escola especializada no contra turno.
Por que D.M.O. conseguiu ser alfabetizada, se antes não tinha condições?
Graças à Educação Física. E os leitores poderiam me perguntar: “Como assim?”
Através dos treinos de atletismo para aprender as técnicas de corrida, dos saltos em altura, extensão e também das aulas de natação, o cérebro de D. foi estimulado para reformular suas conexões em função das necessidades e dos fatores do meio ambiente. Isto é NeuroPlasticidade.
Talvez, se os potenciais físico e motor de D. não tivessem sido estimulados, e se eu não tivesse percebido aquelas perguntas abstratas dentro do carro, durante uma viagem, D. poderia ter perdido a oportunidade tão sonhada por ela, que era o aprendizado da leitura e escrita.
E fica a pergunta: será que D.M.O. teria aprendido a ler e escrever caso não vivenciasse os treinos específicos de saltos em altura e extensão, com técnicas que exigiam extrema concentração?
D. só conhecia o bairro onde morava, o bairro da escola especializada, o centro da cidade e outros poucos lugares. Com o decorrer da necessidade de aprimorar os treinamentos em clubes e pistas de atletismo, nos deparamos com outra dificuldade: nem sempre os familiares tinham disponibilidade de tempo para levá-la aos locais de treinos.
Partimos então para nova etapa no desenvolvimento de D.M.O.: ensiná-la a andar sozinha de ônibus, atravessar ruas, aprender novos endereços. Aliada a esta fase, veio a contribuição das aulas de matemática. O benefício da leitura fica evidente. Outra relação de aprendizagem que eu gostava de fazer era associar as aulas de Geografia/Ciências a cada viagem, e sobre o corpo humano à Educação Física. Conto o passo a passo nas Palestras.
Enfim, todos os conteúdos aprendidos na escola poderiam se comunicar no dia a dia de D. e eu explorava essa questão para ajudar na fixação do aprendizado.
No fim da década de 1990, D. obteve índice para participar do seu primeiro campeonato brasileiro de Atletismo, que aconteceu no Nordeste. Foi sua primeira viagem de avião e tudo era novidade. Imaginem quantas perguntas e olhares maravilhados aconteceram do aeroporto antes do embarque no Rio de Janeiro até o desembarque. Foi fantástico poder apresentar o mundo sob esta nova perspectiva para ela!
Viajar de avião ao lado dela com aqueles olhinhos curiosos, cheios de perguntas e admiração, foi mais emocionante do que o meu primeiro vôo, 10 anos antes para o Amazonas.
As associações que ela fazia às suas aulas de ciências enquanto estávamos no ar, eram muito interessantes. Quem já voou sabe do que estou falando. Porém, a pureza e a forma de elaboração das perguntas eram encantadoras. D. voltou tão maravilhada que daí por diante só desenhava aviões e dizia que queria ser aeromoça (comissária de bordo).
A partir desta viagem, D. alcançou ótimos resultados nos saltos e corridas, aumentando sua marca a cada competição e integrando a Delegação Brasileira de Atletismo para pessoas com deficiência intelectual. Disputou Campeonatos Internacionais na Europa e América do Norte, no final dos anos 90, ainda na sua fase de adolescência.
Escolaridade
D. estudou até a 4ª série primária (na época). Não se sentiu motivada para iniciar a segunda etapa do ensino fundamental porque ao contrário do que aconteceu nos anos iniciais, no ano final do primário, infelizmente, teve aula com uma professora que não tinha muita paciência com a turma.
Regra geral, as pessoas com deficiência intelectual possuem dificuldades com abstrações. O aprendizado concreto é mais fácil de ser assimilado por elas. Se a professora regente não criar formas alternativas de ensino, este aluno com deficiência intelectual poderá perder o interesse pela matemática. E foi o que aconteceu com D.
Esta professora não tinha motivação para trabalhar nenhuma disciplina e assim não conseguia motivar seus alunos.
Assim, D. preferiu voltar seu foco para o trabalho porque estava interessada em ganhar seu próprio dinheiro, namorar, casar e ter filhos, como vários adolescentes. Nós, profissionais envolvidos no seu desenvolvimento, apoiamos sua decisão e começamos a pensar como fazer sua inserção no mercado de trabalho.
Anos mais tarde, D. conseguiu iniciar suas atividades profissionais através de uma terapeuta ocupacional e uma professora regente. Ainda hoje (2013), permanece na condição de colaboradora de uma empresa e recebe seu salário como inúmeros trabalhadores brasileiros. É cidadã, com seus direitos garantidos em carteira assinada. Já trocou de empresa uma vez.
Finalizando, por enquanto...
Verifica-se com esta história de vida que toda pessoa pode se desenvolver plenamente e atingir sua meta de aprendizagem utilizando estímulos que não sejam os tradicionais.
A deficiência intelectual de D. não a impediu de ter sucesso nas habilidades motoras. Ao contrário, ela teve a oportunidade de desenvolver sua habilidade cognitiva porque foi estimulada na área motora.
Esta ex-aluna foi alfabetizada com sucesso devido à Educação Física.
Durante este primeiro sucesso de inclusão, decidi que estaria mais atenta ainda aos meus alunos, com ou sem deficiência porque poder contribuir para o desenvolvimento humano é maravilhoso!
Observem a importância da nossa profissão de educadores físicos!!! É incrível o quanto podemos transformar vidas de famílias inteiras com o nosso trabalho!
É possível usar razão com emoção no nosso trabalho diário. Essa parceria favorece o momento daquele "insight" como tantos profissionais costumam relatar. Talvez, somente a razão, não conseguiria perceber que aquelas "simples" perguntas que a aluna fez no carro, já faziam parte da fase seguinte do seu desenvolvimento.
Referência Bibliográfica
http://cerebro.weebly.com/plasticidade-cerebral.html
em: 31ago2013.
em: 31ago2013